Cê - o primeiro disco de inéditas de Caetano Veloso em seis anos - chega na terça-feira, 12 de setembro, às lojas de todo o Brasil, com tiragem inicial de 50 mil cópias e capa no formato
digipack. Em tom eventualmente confessional, o compositor assina, sozinho, as 12 músicas que, pela ordem, são
Outro,
Minhas Lágrimas,
Rocks,
Deusa Urbana,
Waly Salomão,
Não me Arrependo,
Musa Híbrida,
Odeio,
Homem,
Porquê?,
Um Sonho e
O Herói.
Com produção do guitarrista Pedro Sá e de Moreno Veloso, Caetano fez um disco cheio de estranhezas, distorções e microfonias - pautado por tom fortemente experimental. No texto reproduzido abaixo, distribuído à imprensa juntamente com o CD, o artista explica o conceito de
Cê, que promete ser um de seus trabalhos mais polêmicos.
"Há canções demais nesse mundo. Eu próprio já fiz uma quantidade ridícula delas. Quase sempre com muita ambição e pouco cuidado. Tento não fazer mais tantas. Penso muito em cantar canções já existentes, pois cantar me dá prazer (só não me dá mais porque não canto tão bem quanto acho que se deve cantar). Mas tenho hábito e necessidade de fazer canções.
Em parte para tentar pôr as já feitas por mim numa perspectiva mais favorável, isto é: melhorá-las. Gosto de
Coração Vagabundo, de
Uns, de quase todas as canções que fiz para o filme
Tieta do Agreste e de algumas que fiz para
Orfeu. Gosto de
13 de Maio e das novas que fiz para o disco gravado com Jorge Mautner. Me orgulho (o que é diferente de "gosto") de
Tropicália,
Terra,
Haiti,
Baby,
Fora da Ordem,
Livros. Gostaria que mais gente conhecesse
Motriz,
Mansidão,
Meu Rio,
Um Tom. Mas a impressão geral é de quase irrelevância.
No entanto, agora fiz esse
Cê com 12 músicas novas. Admito que já devia estar com vontade de fazer isso, pois na excursão do
A Foreign Sound eu dizia, em todas as apresentações, que planejava fazer um disco "todo em português, todo de sambas, todos meus, todos inéditos". Era uma piada por causa do disco de canções americanas. Mas a verdade é que comecei a escrever sambas para um CD novo.
Um deles,
Diferentemente, eu cantava no próprio show em que anunciava isso. Decidi que seriam 16 - e que o disco se chamaria
Dezesseis Sambas. Por um motivo ou por outro, fui me afastando dessa idéia. Ao menos por enquanto. Além de
Diferentemente (que não entrou no
Cê), eu tinha feito um (
Luto) que dei pra Gal gravar, outro (
Tiranizar) em parceria com Cézar Mendes - e comecei mais uns quatro que ficaram inacabados.
Musa Híbrida é o único que poderia ter ido para aquele disco e veio para este.
As canções de
Cê são em geral curtas e foram compostas com a formação guitarra/ baixo/ bateria (e eventual teclado) em mente. Mostrei as músicas a Pedro Sá já com as linhas de arranjo esboçadas (às vezes definidas) no violão. Têm, quanto a isso (mas não só quanto a isso), parentesco com as composições de rock. Suponho que elas tenham a mesma atitude desabusada que, na época do tropicalismo (e também depois), me levava a dar mostras de interesse pela cultura de massas dominante (a dos países ricos - e às vezes até dos pobres - de língua inglesa), mas sem submeter-me a ela, nem mesmo tornar-me um especialista nela. Claro que hoje, velho, sei mais coisas do que sabia aos 24. E sei fazer melhor. Mas se alguém achar que o ar de revisão do rock dos anos 80 sob um critério punk é um lugar-comum dos grupos atuais que não evitei adotar em muitos momentos, estará certo. Não se trata, porém, de um disco de rock como os que ouço e me interessam: as músicas são minhas, minha voz continua a mesma, meus cabelos estão mais brancos do que pretos, menos cacheados e sempre mais curtos do que quando os tinha longuíssimos - ou mais longos do que quando decidi usá-los curtos.
Pedro Sá e Moreno são meus filhos (este último, biologicamente falando; nenhum dos dois no sentido artístico: são filhos na acepção familiar do termo). Estão nos seus trinta: têm uma vivência direta dos caminhos que tomou o gosto musical nas últimas décadas - e intervenções pessoais notáveis na orientação desses caminhos. Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado estão nos seus vinte. Foi Pedro quem sugeriu seus nomes quando ouviu meus temas e minhas idéias. E nossa comunicação foi tão clara que em poucos minutos de ensaio as peças ficavam prontas para ser gravadas. Todas. Nem uma só emperrou. Todos traziam logo idéias que levavam as minhas até as últimas e melhores conseqüências.
Esse disco é resultado de muitas conversas que tive com Pedro Sá nesses anos em que ele tem tocado comigo (desde
Noites do Norte). Comentávamos o que ouvíamos, ouvíamos algumas coisas juntos, finalmente falamos em fazer um disco marcando posição na discussão crítica do rock. Seria o disco de uma banda fictícia, onde às vezes ele cantaria, às vezes eu (num personagem diferente e com a voz eletronicamente modificada), às vezes algum outro músico que viéssemos a convidar para compor a banda. Faríamos como os Gorillaz (aliás, gosto muito de Gorillaz). Pensei em fazer isso enquanto gravava o disco de sambas, numa perfeita clandestinidade. Contaríamos muito com a utilidade do
pro-tools.
Ao mesmo tempo, eu sonhava fazer uma outra coisa totalmente diferente disso: um disco chamado
Novas Canções Sentimentais, todo voz-e-violão, todo de canções românticas feitas por mim, mas que parecessem essas lindas de Peninha ou de Fernando Mendes que gravei com grande sucesso comercial. Só
Tá Combinado era uma canção já existente que entraria nesse projeto. Todo o mundo gosta de fazer sucesso. E a mim me traz felicidade poder fazer o que agrada a muita gente, ver que muitas pessoas me ficam gratas e gostando de mim. Sei que um disco assim teria receptividade fácil aqui e na Europa, no Japão (nos Estados Unidos também, possivelmente, dependendo da nitidez da execução e de haver pistas claras quanto ao que fosse sinceridade e ao que fosse ironia), talvez só na Inglaterra ninguém entendesse nada, como acontece freqüentemente. Ainda penso em fazer um disco assim. Mas é um projeto muito solitário. E eu a toda hora me inspirava mais para compor canções do tipo das que iriam pro disco clandestino de rock. Terminei fazendo um disco meu (não tenho esse espírito combativo todo para entrar na clandestinidade), com muito do que veio desse tipo de inspiração, uma canção que transbordou do pacote de sambas (
Musa Híbrida) e outra que meio veio do imaginário grupo das
Novas Canções Sentimentais (
Não Me Arrependo) - sendo que esta última é (com
Minhas Lágrimas) um dos raros momentos autobiográficos de um disco que é quase a obra de um heterônimo. E, seguindo o caminho de purificação do som que Pedro e Moreno foram abrindo, gravamos tudo em fita larga, sem
pro-tools.
Todas as músicas do CD são tocadas pelos mesmos três músicos: Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. E eu, claro, que, além de cantar (às vezes com Pedro, às vezes com Marcelo - só Ricardo não cantou no disco), toco meu velho violão, puxando as cordas (nunca consegui tocar batendo nas cordas como toda a geração rock e pós-rock faz), quase sempre as de náilon, mas, por duas vezes, umas de aço (com que não tenho nenhuma intimidade). Temos vontade de fazer o mesmo no palco.
A única participação especial é de Jonas Sá, na faixa
O Herói, em que ele, atendendo a uma sugestão de Moreno, faz aqueles vocais angelicais à Stevie Wonder (quando a contra-ironia chega ao auge) e, depois, na mesma faixa, aqueles vocais diabólicos (quando a dor do herói salta pra fora da tensão ironia/ não-ironia) que fecham o album. Acho que
Cê é o único álbum meu, até agora, em que só há canções feitas por mim sozinho".
Caetano Veloso
Setembro / 2006