DVD do programa 'Ensaio' flagra Gal em 1994, em instante iluminado da carreira
Resenha de DVD
Título: Programa Ensaio - 1994
Artista: Gal Costa
Gravadora: Trama
Cotação: * * * *
No início de 1994, quando gravou o programa Ensaio, dirigido por Fernando Faro para a TV Cultura, Gal Costa vivia momento iluminado de sua carreira. Na época, a cantora acabara de lançar o CD O Sorriso do Gato de Alice (um dos melhores títulos de sua discografia) e já estava às voltas com a polêmica produção do show homônimo, concebido por Gerald Thomas e avacalhado injustamente por (provinciana) parte da crítica musical somente pela presença de Gerald na direção. O DVD ora lançado pela Trama, com o registro do Ensaio de Gal, flagra a artista neste instante áureo de sua trajetória.
O DVD reúne 17 números musicais entre trechos de entrevista biográfica em que Gal rememora seu início de carreira. Quando Bate uma Saudade - o samba que Paulinho da Viola lançara em 1989 e que a cantora incluíra no roteiro do moderníssimo show O Sorriso do Gato de Alice - é um desses números (no caso, de alto valor documental, pois Gal nunca chegaria a gravar o samba de Paulinho). Outro número digno de registro é Canto Triste, a parceria de Edu Lobo com Vinicius de Moraes revivida por Gal em sublime clima camerístico, numa de suas interpretações mais intensas, feita apenas na companhia do violoncelo de Jaques Morelenbaum, em registro similar ao feito por ela no songbook de Edu Lobo.
Revisto hoje, onze anos depois de sua gravação, o programa capta uma Gal bem mais articulada do que de costume - ainda que ela mesma admita, à certa altura da entrevista, sua inabilidade para contar histórias. Mas Gal as conta com riqueza de detalhes, embora sem nunca deixar escapar traços e sentimentos profundos de sua alma como Elis Regina fizera em 1973, em tensa entrevista realizada para o mesmo programa e editada em DVD na série iniciada pela Trama no ano passado.
Da infância na Bahia, a cantora recorda a convivência feliz em casa dividida com a mãe, a tia e a avó. A menina sapeca que adorava brincar com galinhas logo descobriria intuitivamente a música e o dom de cantar. "Sempre me comuniquei com o mundo através da música", ressalta. E foi através da música e do rádio que surgiu a admiração pela cantora Dalva de Oliveira, expressada através de Olhos Verdes, o samba de Vicente Paiva que Gal regravara no LP Água Viva (1978). Das lembranças vem ainda à memória a primeira música cantada profissionalmente, Se É Tarde me Perdoa, a parceria de Carlos Lyra e João Bôscoli que a artista nunca incluiu em nenhum de seus discos.
Da memória, Gal guardou também a total devoção inicial a João Gilberto ("Era radical: ou João ou nada") - pretexto para que entoe, a capella, o samba Largo da Lapa (Wilson Batista e Marino Pinto), lhe ensinado pelo ídolo João num programa da TV Tupi em 1970. Depois de breve e inesperado encontro com Tom Zé, surpresa da produção do programa, Gal recordaria que a paixão por João Gilberto a aproximaria de Caetano Veloso, com quem gravou seu primeiro LP em 1967, representado no roteiro através de Coração Vagabundo. Foi, aliás, com o aval de Caetano que Gal viraria a musa da Tropicália. O programa apresenta trecho da cantora no Festival da Record em que ela defendeu Divino Maravilhoso com atitude janisjopliniana. "Com a Tropicália, meu canto ficou mais extrovertido, para fora", conceitua.
Entre números do show O Sorriso do Gato de Alice (Saudosismo, Desde que o Samba É samba), a cantora recorda a força recebida por Chico Buarque no início da carreira e gaba-se da confessa intimidade com a obra de Dorival Caymmi ("Sei tudo de Caymmi"). É quando ela canta João Valentão numa interpretação tão luminosa e perfeita que fica claro que Gal Costa nunca precisou de ensaio.