Resenha de CD
Título: Menino do Rio
Artista: Mart'nália
Gravadora: Quitanda / Biscoito Fino
Cotação: * * * *
Sem tirar o pé do samba, Mart'nália pisa no terreno sagrado de Maria Bethânia em seu quinto disco,
Menino do Rio, editado pelo selo da
Abelha Rainha, Quitanda. A própria Mart'nália agradece a Bethânia no encarte do disco por ter enxergado "com outros olhos" sua espiritualidade - evidente na releitura suave de
Nas Águas de Amaralina (1997), samba baianíssimo de Martinho da Vila e Nelson Rufino. O fato de o maestro de Bethânia, Jaime Alem, assinar os arranjos de 14 das 15 faixas já traz a filha de Martinho para o universo musical da colega baiana, que lê poema de Vinicius de Moraes (
Cartão Postal) na bossa
São Sebastião.
Cheio de bossa, o CD é
cool, com violões e percussões suaves. Há uma atmosfera delicada que permeia todo o repertório, inclusive um samba abusado de Ana Carolina (
Cabide) e uma balada de Guilherme Arantes (
Só Deus É quem Sabe, em registo etéreo). O resultado é quase tão sedutor quanto o de
Pé do meu Samba (2002), o anterior disco de estúdio de Mart'nália, produzido por Celso Fonseca com direção de Caetano Veloso, presente neste
Menino do Rio com a recriação em estilo voz & violão (e eventual cuíca) da faixa-título, de sua autoria. De 1980, a música aparece unida a
Estácio, Holly Estácio - a pérola negra de Luiz Melodia que Bethânia teve a honra de lançar no disco
Drama (1972).
Mart'nália transita pela novíssima bossa de fraseado soul (em
Pára Comigo, faixa excepcionalmente arranjada pelo baixista Arthur Maia), por pop acústico (em
Soneto do teu Corpo, parceria de Moska e Leoni) e por levadas eventualmente funkeadas, mas deixa claro logo na abertura de
Menino do Rio que sua praia é a do samba. "O samba corre em minhas veias / O samba é a minha escola", avisa em
Pra Mart'nália, samba feito para ela por Jorge Agrião e Fred Camacho, gravado com várias citações de sucessos de Martinho da Vila.
O mais carioca dos ritmos brasileiros dá o tom também em
Boto meu Povo na Rua (Arlindo Cruz, Acyr Marques e Ronaldinho) e em
Sem Perdão a Vida É Triste Solidão, parceria mais poética da lavra de Zélia Duncan e Ana Costa com a própria Mart'nália. Mas o Rio encontra a Bahia em
Casa da Minha Comadre, delicioso samba de roda, de Roque Ferreira e do mesmo Jorge Agrião de
Pra Mart'nália.
Da seara de Mart'nália, o destaque é
Pretinhosidade, negróide colaboração com seu fiel escudeiro Mombaça. O mosaico de referências costura ainda parceria afro com Moska (
Essa Mania, versão de música africana), samba raro de Monsueto (
Casa 1 da Vila, em arranjo eficientemente econômico que valoriza os versos "Eu sinto sede, eu sinto fome / Mas mulher de amigo meu pra mim é homem", de outro significado na voz feminina de Mart'nália) e um partido de alta estirpe,
A Origem da Felicidade, que agrega o calor da bateria da escola de samba Unidos de Vila Isabel e fecha o disco em grande estilo e espiritualidade. Mart'nália foi até à Bahia sagrada de Bethânia, mas continua com seus dois pés na Vila de Noel e de seu pai Martinho.