Hábil com as palavras, não fosse ele um poeta, Arnaldo Antunes assina o texto de apresentação de seu sétimo disco solo,
Qualquer, nas lojas esta semana com tiragem inicial de sete mil cópias e distribuição da gravadora Biscoito Fino. No texto, Antunes detalha o processo de criação do álbum e historia a origem do repertório.
"Esse disco foi criado a partir de dois desejos. O primeiro era o de gravar com os músicos tocando juntos, ao mesmo tempo. Diferentemente dos meus últimos discos, em que as gravações aconteciam por etapas e as camadas de instrumentos iam aos poucos se somando e compondo os arranjos, aqui o resultado foi se formando antes, em dois meses de ensaios entre São Paulo e Rio de Janeiro, para ser registrado em apenas três dias, ao vivo, no estúdio Mega (RJ). Os arranjos já estavam prontos, muitos poucos
overdubs foram feitos. E o disco todo foi gravado com a mesma formação, o que lhe deu uma identidade sonora muito coesa.
O segundo desejo era o de ressaltar um lado que vem aos poucos aparecendo mais em meu trabalho - o canto grave, apoiado por um contexto musical mais sereno. Com os Titãs aprendi a cantar berrado. Para soar potente com o peso daquele som, os tons escolhidos para as músicas tinham que ser altos, para serem alcançados com mais volume de voz. O desejo era cantar sujo, rasgado, incorporando ruído à voz. Ao mesmo tempo, sempre norteei meu canto para uma adequação à intenção do que diziam as letras das canções. Como se tentasse expressar com o máximo de clareza o que a canção dizia (lição de João Gilberto).
Nos meus discos solo, passei a me sentir mais livre para experimentar outros gêneros, outras formações instrumentais e outros registros de canto. Comecei a explorar, em algumas faixas, os graves de minha voz, numa tonalidade mais próxima de como a uso na fala. Com os Tribalistas senti que devia cantar com mais suavidade, para timbrar junto com as vozes de Marisa e Carlinhos. Ouvir minha voz junto com a deles era muito diferente de me ouvir cantando sozinho e isso me fez aprender muito mais sobre meu próprio canto.
Saiba (meu último CD, de 2004) já trazia alguns frutos dessa experiência, na colocação mais tranqüila da voz, assim como nos arranjos mais intimistas. Fiquei então com vontade de ir ainda mais fundo nessa direção. A primeira coisa que pensei foi gravar um disco todo sem bateria nem percussão. Parecia um tanto radical, mas isso me fez gostar ainda mais da idéia. Queria que soasse com a leveza de um acústico, mas sem a necessidade de usar apenas instrumentos acústicos.
Pude experimentar uma formação parecida com essa no início de 2005, quando recebi o convite do diretor José Joffily para compor uma canção-tema para o seu longa-metragem
Achados e Perdidos, que estava em fase de montagem. Musiquei
Hotel Fraternité, poema de Hans Magnus Enzensberger, traduzido por Aldo Fortes e convidei para a gravação Paulo Tatit (baixo e violão), Edgard Scandurra (guitarra) e Daniel Jobim (piano elétrico). Quando ouvi o resultado, já sabia que era bem o que eu queria fazer no meu próximo disco. Comecei então a pensar num repertório. Com Chico Salem, que toca comigo há alguns anos e fazia parte da banda que me acompanhava no show do
Saiba, iniciei uma pré-produção registrando, só com voz e um ou dois violões, músicas que eu gostaria de gravar com esse tipo de instrumentação; estudando as levadas e os tons mais apropriados. Passamos então para a fase dos ensaios. Queria apenas instrumentos de cordas (violões, guitarras, baixo, bandolim, banjo, etc.) e piano. Chamei, além do Chico, Dadi e Cezar Mendes, que haviam participado das gravações dos Tribalistas; Edgard Scandurra, que vem tocando nas gravações de todos meus discos solo até hoje e Daniel Jobim, que já havia participado do
Saiba. Essa formação era para mim como um sonho que estava se realizando.
As surpresas que cada um trazia, os improvisos que resultavam em frases marcantes, a liga entre os timbres, a precisão ao mapear as partes das canções, a delicadeza e sensibilidade ao definir as dinâmicas; tudo me encantava. Para produzir convidei o Alê Siqueira, com quem já havia trabalhado em
Paradeiro, Tribalistas e na trilha que compus para o Grupo Corpo e que consegue unir um grande conhecimento técnico dos recursos de estúdio com apurados toques musicais. Chico Salem e Cezar Mendes, nos violões de aço e de nylon, montaram a estrutura básica de onde partiram os arranjos. Os primeiros ensaios foram feitos só com nós três. Edgard levou uma
talk-box (uma espécie de aparelho que filtra o som da guitarra para um tubo, leva-o até a boca que, como uma caixa de ressonância, devolve o som a um microfone, algumas vezes junto com a voz), que contribuiu para dar uma personalidade original ao som da guitarra, e que acabou sendo marca da sonoridade desse disco. Daniel Jobim colocava cada nota ou acorde com tamanha precisão e economia, que conseguia valorizar todos os silêncios que os cercavam.
Dadi, atacando ora no baixo, ora no bandolim, na guitarra sitar ou no okulele, explorava variações timbrísticas que iam ocupando espaços e profundidades imprevistas no resultado sonoro. No repertório, além de
Hotel Fraternité, lançada no filme do Joffily, que regravamos para o disco, composições inéditas como
Para Lá (primeira parceria minha com Adriana Calcanhotto),
O Que Você Quer Saber de Verdade e
Contato Imediato (duas parcerias pós-Tribalistas com Marisa e Carlinhos),
Qualquer e
Num Dia (parcerias com os portugueses Helder Gonçalves e Manuela Azevedo, integrantes da banda Clã, a última também com Chico Salem).
Duas parcerias com Dadi -
2 Perdidos, que eu havia gravado anteriormente para outro filme de José Joffily (
2 Perdidos Numa Noite Suja), relida agora com outro arranjo e
Da Aurora Até o Luar - gravadas também por ele em seu CD solo, que foi lançado apenas no Japão, mas deve sair em breve também por aqui. Algumas canções minhas que foram gravadas por outros intérpretes e que sempre tive vontade de cantar, como
Lua Vermelha (parceria com Carlinhos Brown, gravada por Maria Bethânia em
Âmbar, 1996),
Eu Não Sou da Sua Rua (parceria com Branco Mello, gravada por Marisa Monte em
Mais, 1990) e
As Coisas (parceria com Gilberto Gil, gravada por ele e Caetano Veloso em
Tropicália 2, 1993).
Sem Você, outra parceria com Brown, gravada por ele em 1998 no CD
Omelete Man, que já havia sido gravada no mesmo ano também por mim, junto com Arto Lindsay e Davi Moraes, para a coletânea
Red Hot Lisbon, recebeu aqui uma nova versão. E duas músicas de outros autores:
Acabou Chorare, de Moraes e Galvão, gravada no disco dos Novos Baianos, que cresci ouvindo e canto há anos no violão em casa, mas só agora tive coragem de gravá-la e
Nossa Bagdá, de Péricles Cavalcanti, que ouvi no seu último disco,
Blues 55, de 2004, e que me encantou por conseguir tratar com doçura um tema tão cercado de intolerância por todos os lados. Algumas vezes acho que atingi uma certa maturidade nesse disco. Em outras, penso que ele é fruto de minha ansiedade artística nesse momento, sem que isso signifique um lugar definitivo a que eu tenha chegado. Posso vir a fazer um disco berrado de som pesado, ou qualquer outra coisa, no futuro, se tiver vontade. Mas por enquanto é isso. É talvez o meu disco menos ligado ao universo do rock'n' roll. Ao mesmo tempo tem uma identidade sonora de banda. De qualquer forma, eu toda vez acho o último disco o melhor".
Arnaldo Antunes