'C�', o disco, nas palavras de Caetano

Com produ��o do guitarrista Pedro S� e de Moreno Veloso, Caetano fez um disco cheio de estranhezas, distor��es e microfonias - pautado por tom fortemente experimental. No texto reproduzido abaixo, distribu�do � imprensa juntamente com o CD, o artista explica o conceito de C�, que promete ser um de seus trabalhos mais pol�micos.
"H� can��es demais nesse mundo. Eu pr�prio j� fiz uma quantidade rid�cula delas. Quase sempre com muita ambi��o e pouco cuidado. Tento n�o fazer mais tantas. Penso muito em cantar can��es j� existentes, pois cantar me d� prazer (s� n�o me d� mais porque n�o canto t�o bem quanto acho que se deve cantar). Mas tenho h�bito e necessidade de fazer can��es.
Em parte para tentar p�r as j� feitas por mim numa perspectiva mais favor�vel, isto �: melhor�-las. Gosto de Cora��o Vagabundo, de Uns, de quase todas as can��es que fiz para o filme Tieta do Agreste e de algumas que fiz para Orfeu. Gosto de 13 de Maio e das novas que fiz para o disco gravado com Jorge Mautner. Me orgulho (o que � diferente de "gosto") de Tropic�lia, Terra, Haiti, Baby, Fora da Ordem, Livros. Gostaria que mais gente conhecesse Motriz, Mansid�o, Meu Rio, Um Tom. Mas a impress�o geral � de quase irrelev�ncia.
No entanto, agora fiz esse C� com 12 m�sicas novas. Admito que j� devia estar com vontade de fazer isso, pois na excurs�o do A Foreign Sound eu dizia, em todas as apresenta��es, que planejava fazer um disco "todo em portugu�s, todo de sambas, todos meus, todos in�ditos". Era uma piada por causa do disco de can��es americanas. Mas a verdade � que comecei a escrever sambas para um CD novo.
Um deles, Diferentemente, eu cantava no pr�prio show em que anunciava isso. Decidi que seriam 16 - e que o disco se chamaria Dezesseis Sambas. Por um motivo ou por outro, fui me afastando dessa id�ia. Ao menos por enquanto. Al�m de Diferentemente (que n�o entrou no C�), eu tinha feito um (Luto) que dei pra Gal gravar, outro (Tiranizar) em parceria com C�zar Mendes - e comecei mais uns quatro que ficaram inacabados. Musa H�brida � o �nico que poderia ter ido para aquele disco e veio para este.
As can��es de C� s�o em geral curtas e foram compostas com a forma��o guitarra/ baixo/ bateria (e eventual teclado) em mente. Mostrei as m�sicas a Pedro S� j� com as linhas de arranjo esbo�adas (�s vezes definidas) no viol�o. T�m, quanto a isso (mas n�o s� quanto a isso), parentesco com as composi��es de rock. Suponho que elas tenham a mesma atitude desabusada que, na �poca do tropicalismo (e tamb�m depois), me levava a dar mostras de interesse pela cultura de massas dominante (a dos pa�ses ricos - e �s vezes at� dos pobres - de l�ngua inglesa), mas sem submeter-me a ela, nem mesmo tornar-me um especialista nela. Claro que hoje, velho, sei mais coisas do que sabia aos 24. E sei fazer melhor. Mas se algu�m achar que o ar de revis�o do rock dos anos 80 sob um crit�rio punk � um lugar-comum dos grupos atuais que n�o evitei adotar em muitos momentos, estar� certo. N�o se trata, por�m, de um disco de rock como os que ou�o e me interessam: as m�sicas s�o minhas, minha voz continua a mesma, meus cabelos est�o mais brancos do que pretos, menos cacheados e sempre mais curtos do que quando os tinha longu�ssimos - ou mais longos do que quando decidi us�-los curtos.
Pedro S� e Moreno s�o meus filhos (este �ltimo, biologicamente falando; nenhum dos dois no sentido art�stico: s�o filhos na acep��o familiar do termo). Est�o nos seus trinta: t�m uma viv�ncia direta dos caminhos que tomou o gosto musical nas �ltimas d�cadas - e interven��es pessoais not�veis na orienta��o desses caminhos. Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado est�o nos seus vinte. Foi Pedro quem sugeriu seus nomes quando ouviu meus temas e minhas id�ias. E nossa comunica��o foi t�o clara que em poucos minutos de ensaio as pe�as ficavam prontas para ser gravadas. Todas. Nem uma s� emperrou. Todos traziam logo id�ias que levavam as minhas at� as �ltimas e melhores conseq��ncias.
Esse disco � resultado de muitas conversas que tive com Pedro S� nesses anos em que ele tem tocado comigo (desde Noites do Norte). Coment�vamos o que ouv�amos, ouv�amos algumas coisas juntos, finalmente falamos em fazer um disco marcando posi��o na discuss�o cr�tica do rock. Seria o disco de uma banda fict�cia, onde �s vezes ele cantaria, �s vezes eu (num personagem diferente e com a voz eletronicamente modificada), �s vezes algum outro m�sico que vi�ssemos a convidar para compor a banda. Far�amos como os Gorillaz (ali�s, gosto muito de Gorillaz). Pensei em fazer isso enquanto gravava o disco de sambas, numa perfeita clandestinidade. Contar�amos muito com a utilidade do pro-tools.
Ao mesmo tempo, eu sonhava fazer uma outra coisa totalmente diferente disso: um disco chamado Novas Can��es Sentimentais, todo voz-e-viol�o, todo de can��es rom�nticas feitas por mim, mas que parecessem essas lindas de Peninha ou de Fernando Mendes que gravei com grande sucesso comercial. S� T� Combinado era uma can��o j� existente que entraria nesse projeto. Todo o mundo gosta de fazer sucesso. E a mim me traz felicidade poder fazer o que agrada a muita gente, ver que muitas pessoas me ficam gratas e gostando de mim. Sei que um disco assim teria receptividade f�cil aqui e na Europa, no Jap�o (nos Estados Unidos tamb�m, possivelmente, dependendo da nitidez da execu��o e de haver pistas claras quanto ao que fosse sinceridade e ao que fosse ironia), talvez s� na Inglaterra ningu�m entendesse nada, como acontece freq�entemente. Ainda penso em fazer um disco assim. Mas � um projeto muito solit�rio. E eu a toda hora me inspirava mais para compor can��es do tipo das que iriam pro disco clandestino de rock. Terminei fazendo um disco meu (n�o tenho esse esp�rito combativo todo para entrar na clandestinidade), com muito do que veio desse tipo de inspira��o, uma can��o que transbordou do pacote de sambas (Musa H�brida) e outra que meio veio do imagin�rio grupo das Novas Can��es Sentimentais (N�o Me Arrependo) - sendo que esta �ltima � (com Minhas L�grimas) um dos raros momentos autobiogr�ficos de um disco que � quase a obra de um heter�nimo. E, seguindo o caminho de purifica��o do som que Pedro e Moreno foram abrindo, gravamos tudo em fita larga, sem pro-tools.
Todas as m�sicas do CD s�o tocadas pelos mesmos tr�s m�sicos: Pedro S�, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. E eu, claro, que, al�m de cantar (�s vezes com Pedro, �s vezes com Marcelo - s� Ricardo n�o cantou no disco), toco meu velho viol�o, puxando as cordas (nunca consegui tocar batendo nas cordas como toda a gera��o rock e p�s-rock faz), quase sempre as de n�ilon, mas, por duas vezes, umas de a�o (com que n�o tenho nenhuma intimidade). Temos vontade de fazer o mesmo no palco.
A �nica participa��o especial � de Jonas S�, na faixa O Her�i, em que ele, atendendo a uma sugest�o de Moreno, faz aqueles vocais angelicais � Stevie Wonder (quando a contra-ironia chega ao auge) e, depois, na mesma faixa, aqueles vocais diab�licos (quando a dor do her�i salta pra fora da tens�o ironia/ n�o-ironia) que fecham o album. Acho que C� � o �nico �lbum meu, at� agora, em que s� h� can��es feitas por mim sozinho".
Caetano Veloso
Setembro / 2006
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